ENTRE O VALE E O DESERTO DE DEUS
A medida que os anos vão passando, as pessoas vão ficando cada vez mais brutalizadas. E, neste cenário, o espírito vingativo, a mágoa, o insulto e as violências são coisas que estão se tornando cada vez mais corriqueiras e, em muitos casos, são até mesmo incentivadas. Vemos isso claramente, por exemplo, nos filmes que apresentam heróis e heroínas cada vez mais vingativos e sanguinários. Isso reflete o sentimento do povo que tem dado vazão aos seus instintos mais animalescos.
No cenário religioso, poder-se-ia pensar que encontraríamos um quadro diferente. Ledo engano. Cada dia mais os cristãos estão se tornando vingativos e egoístas. E, a exemplo dos filmes que citei acima, o que expressa a alma do povo cristão, são as músicas. As letras dessas, além de se tornar cada vez mais antropocêntricas (o homem no centro), são verdadeiros tutoriais de como ser vingativo. Frases como “quem te viu passar na prova e não te ajudou, quando ver você na bênção, vão se arrepender. Vão estar na plateia e você no palco” dão a tônica de como está sendo doutrinada essa geração de crentes. É um sentimento de que Deus nos incentiva a ostentação para mostrar aos nossos “inimigos” a bênção que Ele nos deu.
Mas esse é apenas um fragmento do quadro maior, onde muitos crentes são ensinados a idolatrar o acúmulo de bens como se disso dependesse sua salvação. E para fomentar esse sentimento existem as campanhas, correntes, montes e, pior, testemunhos de veracidade duvidosa, que querem insuflar na alma dos incautos um sentimento de posse de bens supérfluos, de conquista financeira e saúde perfeita. Na verdade, nos nossos dias, ninguém quer perder. Somos ensinados a ganhar, adquirir, abocanhar, conquistar e coisas como essas. Por causa disso, as palavras que mais ouvimos sair dos púlpitos e também faladas pelo populacho crente são “bênção”, “vitória” e “prosperidade”. Como temos nos distanciado do humilde Mestre que preferiu nascer numa manjedoura, viver sem onde reclinar a cabeça e morrer numa rude cruz!
Contudo, será que encontramos nas Escrituras somente Jesus com uma atitude como essa? Com certeza não. O Santo Livro nos mostra diversos outros exemplos de homens e mulheres que não prezaram nem as suas próprias vidas, quem dirá as futilidades idolatradas pelos cristãos hodiernos. E é sobre um desses heróis que vou falar nas linhas que seguem. Falarei de Abrão e sua renúncia.
Abrão, que posteriormente teve seu nome mudado por Deus para Abraão, nasceu em Ur dos Caldeus, uma terra rica e idólatra. E não se sabe como, mas Deus revelou-se para ele e ordenou que deixasse sua família e sua terra. E assim ele o fez somente de posse de uma promessa. (Gênesis 12.1-4).
Contudo, Abrão ainda levou um resquício de sua ligação familiar: seu sobrinho Ló. Ele era uma parte de sua história pregressa e um eco de sua cidade natal, Ur dos Caldeus.
Mas, em dado momento, tio e sobrinho começaram a prosperar nas terras de suas andanças a tal ponto que a terra não podia mais suportar tamanho rebanho. E o resultado disso foi o conflito entre os empregados deles.
Foi então que Abrão fez exatamente o que muitos cristãos de hoje não fariam: ele renunciou. Abrão deu a seu sobrinho a liberdade de escolher para qual lado ir, isso para que não houvesse uma desavença maior entre eles e o vínculo familiar se quebrasse de todo.
Ló escolhe as campinas verdes, o vale fértil. E para Abrão, fica a terra árida.
Para muitos de hoje, a atitude do velho Abrão foi inaceitável. Ele era o líder daquela expedição, além de ser o tio de Ló e, logo, tinha autoridade sobre ele, que estava debaixo de seus auspícios. Então, nada mais justo que Abrão escolher o lado que quisesse. Mas ele escolheu a paz, ainda que em detrimento seu. Abrão ficou com o que restou: a terra seca e Deus.
Contudo, não há renúncia em nome da paz que não seja recompensada pelo Senhor. Depois da partida de Ló, Deus fala “Ergue os olhos… toda essa terra que vês, eu te darei” (Gênesis 13.14,15).
O simbolismo aqui é muito claro: o desprendimento vem antes da revelação e da promessa. O coração que se liberta da ambição e do espírito de posse escuta a voz de Deus no deserto.
Possivelmente, o velho Abrão estivesse profundamente triste por se afastar de forma tão dolorosa de seu amado sobrinho, o membro que sobrou de sua família mesopotâmica. E talvez esse tenha sido o motivo de Deus ter-lhe mandado erguer os olhos. Um rompimento como esse é muito custoso, mas Deus está presente para restaurar e restituir a alegria.
A renúncia de Abrão provou ser, no fim das contas, algo muito benéfico. Isso porque a alma que se apega ao que é verde, às belas planícies e aos vales frondosos do mundo acaba perdendo de vista o paraíso de Deus.
Mas a história não acaba aí. Ló, que já estava morando em Sodoma, se envolve involuntariamente em um conflito e acaba sendo capturado, e a notícia chega aos ouvidos de Abrão no deserto.
Como agiriam os corações endurecidos de hoje? Certamente que muitos pensariam em deixar Ló resolver seus próprios problemas, já que morar naquela cidade foi escolha sua. Mas esse sentimento não caberia no coração bondoso de Abrão. É interessante notar que o homem que fez uma renúncia dolorosa em nome da paz, vista-se para a guerra para salvar quem o havia deixado com uma terra seca. Ele não tomou essa atitude belicosa por obrigação ou imposição, mas sim por compaixão. Aqui, o amor não tem cadeias e nem barganhas – é puro, livre e corajoso. Ló não era merecedor, mas o coração generoso e livre de seu tio lhe dizia o contrário.
Depois de uma batalha dura, Abrão vence e liberta seu sobrinho. Por lei, cabia-lhe os despojos da batalha. Entretanto, Abrão novamente decide renunciar ao que era seu por direito. Ele não quis se contaminar com os espólios de Sodoma. Preferiu manter as suas mãos limpas, a alma leve e a fé intacta.
Mas Abrão era de carne e osso. O imbróglio com seu sobrinho, que culminou em afastamento, somado à dureza e violência da batalha e à renúncia de bens pecuniários, o abateu. Sua alma, por fim, ficou pesada.
Logo após essa segunda renúncia, quando a alma do velho estava esmorecida, Deus fala novamente: “Não temas, Abrão, eu sou o teu escudo, o teu grandíssimo galardão” (Gênesis 15.1 ARC).
Mais uma vez, em um momento crítico, o Senhor intervém. Quando a alma de Abrão estremeceu, o Senhor mostrou que estava firme em seu trono e que Ele mesmo era sua recompensa.
As lições das renúncias de Abrão têm grande significância para nós.
Em primeiro lugar, vemos que, quando Abrão recebe a ordem de Deus para deixar a cidade de Ur, era para deixar a sua parentela. Mas, mesmo assim, Abrão insistiu em levar seu sobrinho consigo. Dessa forma, a separação de Ló significa, para nós, separarmo-nos do que impede nosso crescimento e do que nos faz desobedecer à ordem de Deus. Também quando nos desapegamos daquilo que parece ser lucro, mas que, no fim, mostra-se prejudicial, Deus se revela e renova as suas promessas.
Em segundo lugar, vencer sem se corromper é um ato de muita força e foco na santidade. Isso mostra claramente que, para vencermos, não é necessário nos corrompermos com as coisas desse mundo, manchando nossas mãos com o que vem de Sodoma.
E por fim, a verdadeira recompensa, desfrutada no “aqui e agora”, mas que reflete no “lá e no além”, não vem dos homens, mas sim de Deus. A suposta recompensa dos homens é tão forte quanto a névoa da manhã. Isso me faz lembrar da multidão que recebeu Jesus com “Hosana” na entrada de Jerusalém, mas que cinco dias depois eles mesmos clamavam: “Crucifica!”. Entretanto a recompensa que vem de Deus enriquece e não acrescenta dores (Provérbios 10.22).
Que tomemos como exemplo Abrão, esse homem de Deus que ficou conhecido como o pai da fé. Mesmo podendo reclamar os seus direitos por ser uma autoridade, escolheu renunciar em nome da paz. Ainda que a renúncia fosse dolorosa, escolheu afastar-se daquele que representava a sua família e fez isso em nome da paz. Ainda que pudesse aferir ganho pela vitória, preferiu manter-se puro para que não se contaminasse com as riquezas do mundo.
Que Ló você precisa deixar ir? Quais as planícies verdes e vales frondosos ainda conseguem te prender? Você escolheria a paz ou reivindicaria seus direitos?
Ricardo Castro
Pastor, doutor em teologia e músico
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