MOISÉS NÃO FOI TIRADO DAS ÁGUAS

 


Existe um ditado popular que diz que “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.  Embora esse adágio realmente não transforme uma mentira em verdade, revela como equívocos podem se enraizar na cultura popular. E uma dessas mentiras que vem sendo aceita como verdade por séculos é a ideia de que Moisés foi colocado nas águas do rio Nilo. E essa mentira é tão forte que se tornou uma “interpretação” corrente há muitas décadas. Eu mesmo já vi pregadores famosos falando a este respeito. Ademais, existem até filmes que repetem essa mentira, como o filme de animação “Príncipe do Egito” da DreamWorks Animation lançado em 1998.

Assisti ao filme e ele é bom demais. E especificamente, a parte em que Joquebede se despede do seu filhinho, colocando nas águas repletas de hipopótamos e crocodilos é emocionante e visceral.  Mas apesar de sua força emocional, essa cena não condiz com o relato bíblico.

Mas, antes de dar a interpretação correta, devo falar do contexto para situar você nesta história.

O patriarca José, que havia levado sua família para morar no Egito, havia morrido. E o Faraó que reinava naqueles dias não conhecia quem era esse grande homem que fora seu governador e livrara o Egito de uma fome imensa.

Faleceu José, e todos os seus irmãos, e toda aquela geração. Mas os filhos de Israel foram fecundos, e aumentaram muito, e se multiplicaram, e grandemente se fortaleceram, de maneira que a terra se encheu deles. Entrementes, se levantou novo rei sobre o Egito, que não conhecera a José. (Êxodo 1:6,7)

O texto Sagrado diz que Faraó não conhecia José, e por causa disso, muitos acreditam que ele não sabia quem ele era. Mas, paremos para refletir um pouco. Um soberano não saberia que um estrangeiro havia sido governador e interferido no seu reino livrado-o da fome? E será que Faraó não procuraria saber a origem daquele povo de costumes diferentes que se multiplicava exponencialmente em seu reino? 

Então, quando a Bíblia diz que Faraó não conhecia José, é pelo fato de não respeitar nem a ele e nem aos seus descendentes. Foi o mesmo quando ele disse “Quem é Jeová para que lhe ouça eu a voz e deixe ir a Israel?” (Êxodo 5:2). Como ele não teria pelo menos um conhecimento rudimentar do Deus daquela imensa multidão que ele havia escravizado?

Acontece que o sistema de crença dos egípcios era intrincado e com diversos deuses. E a forma deles se relacionarem com os deuses era manipulando-os por meio de sacrifícios e oferendas para que eles fizessem o que queriam e não o contrário, como Moisés e Arão queriam. Então, mais uma vez, não é o caso de que Faraó não tinha conhecimento de quem era Jeová, mas de que ele não o respeitava.

Voltando ao caso de Moisés, no tempo de seu nascimento, por temer o crescimento do povo de Israel, Faraó deu uma ordem para que todas as crianças do sexo masculino fossem mortas. Então, quando Moisés nasceu, já havia esse decreto. Seus pais o esconderam por três meses e isso deve ter sido extremamente difícil. Acredito que os soldados egípcios deveriam dar batidas regulares nas casas e os vizinhos egípcios certamente denunciavam qualquer hebreia que tivesse uma criança em casa. 

E, depois de três meses tentando salvar o seu filho, Joquebede não pôde mais escondê-lo e por causa disso, sua família inteira estava ameaçada. Então, ela produz um cesto e coloca a criança dentro.

Não podendo, porém, escondê-lo por mais tempo, tomou um cesto de junco, calafetou-o com betume e piche e, pondo nele o menino, largou-o no carriçal à beira do rio. (Êxodo 2:3).

Percebeu? Ela depositou seu filho na vegetação à beira do rio e não no rio.

Mas, por que as pessoas falam que Moisés foi depositado nas águas do rio? Acredito piamente que seja devido ao significado do seu nome, que elas pensam ser: “Tirado das águas”. Mas, a palavra hebraica “Mosheh” quer dizer “Tirado” ou “Resgatado”, sem o complemento “das águas”. A princesa disse "porque o tirei (resgatei) das águas", mas isso não quer dizer que “Mosheh” tem o acréscimo "das águas".

Anos atrás, postei no meu canal um vídeo falando a respeito de Moisés ter sido colocado na vegetação do rio e não em suas águas, e a maioria dos comentários (muitos deles insultuosos) foi em favor da interpretação popular. E minha resposta à maioria delas foi somente “leia o texto”. Para assistir ao vídeo, basta procurá-lo no meu canal do YouTube.

É interessante que o rio Nilo desce de Tebas, a capital do Egito, para Gosen. Logo, para que o cesto de Moisés chegasse até Tebas, onde vivia a princesa, ele deveria subir as águas. Águas cheias de perigos.

Outra coisa bastante interessante é que, na interpretação popular, costuma-se dizer que Mirian, a irmã de Moisés, teria corrido para acompanhar o cesto subindo o rio. E Gosen distava de 50 a 70 quilômetros de Tebas. Então, isso quer dizer que a menina teria que correr todo esse percurso irregular, sendo apenas uma criança de 13 anos. 

Certa vez, vi um pregador de renome nacional dizer que Deus dotou Mirian de uma força descomunal para que ela pudesse completar esta corrida sem tirar os olhos de cima do menino. 

Mas, devemos observar que o versículo quatro nos diz que Mirian ficou de longe observando o cesto e nada fala de que ela tenha corrido para acompanhá-lo pela extensão do rio.

Quando falo dessas coisas, muitas pessoas me perguntam: “Se tudo aconteceu assim, nesta passagem não há nenhum milagre de Deus”. E geralmente respondo de forma bem direta: o milagre de Deus está em que a filha de Faraó desceu da capital Tebas para tomar banho em Gosen, a terra dos escravos. O milagre também está no fato de que, mesmo tendo preconceitos fortemente arraigados, a princesa se afeiçoou a uma criança hebréia. E ainda, o milagre está em que, mesmo tendo muitas empregadas que pudessem cuidar do menino, ela decidiu deixar (sem saber) que sua própria mãe cuidasse dele. E o que acho mais maravilhoso nisso tudo é que o próprio Faraó aceitou ter um neto adotado do povo a quem julgava serem inferiores.

Dessa forma, apesar dessa interpretação popular de que Moisés tenha sido colocado nas águas do rio Nilo seja muito antiga, o relato biblico é diferente. Diz que sua mãe, preocupada com a sua segurança, o colocou na vegetação à beira do rio, esperando que um milagre acontecesse. E aconteceu.

Isso nos alerta para que apliquemos o mesmo critério de observar o texto bíblico mais atentamente, independentemente se são antigas e populares. Que analisemos se as coisas em que cremos são realmente bíblicas ou fruto das más interpretações perpetuadas pelo tempo.

A história de Moisés nos ensina, sobretudo, que a fidelidade ao texto bíblico é mais importante do que as interpretações populares e tradições religiosas. Joquebede, a mãe aflita, confiou plenamente em Deus ao deixar seu filhinho na vegetação à beira do rio. E Deus respondeu com milagres poderosos, mas silenciosos.

Que possamos nos manter fiéis às Escrituras, mesmo que isso implique no confronto com ideias estabelecidas durante os séculos.

Obras consultadas:

CHAMPLIN, Russell Norman. O Antigo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. São Paulo: Hagnos, 2014. 5v.

BARNES, Albert. Notes on the New Testament. Philadelphia: Blackie & Son, [s.d.]. Disponível em:

https://pt.scribd.com/doc/169985565/Notas-de-Barnes-Sobre-o-Novo-Testamento. Acesso em: 24 jul. 2025.

 

CLARKE, Adam. Comentário Bíblico com Notas Críticas sobre toda a Bíblia. New York: J. Emory & B. Waugh, 1831. 6v.

 

PFEIFFER, Charles F.; HARRISON, Everett F. Comentário Bíblico Moody. [S.I.]: Moody Press, 2001. 3 v.

 

     

Ricardo Castro
Pastor, Doutor em Teologia, Músico

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