A CORAGEM DE PERMANECER NA VERDADE

 



Deflagrada no século XVI, a Reforma Protestante foi um processo revolucionário que sempre me encantou. Homens que, mesmo vivendo durante sua vida inteira debaixo de uma suposta verdade, ao descobrirem a realidade, romperam com o status quo e influenciaram o mundo inteiro. Visto de maneira simplista, isso pode parecer uma coisa pequena, afinal, eles apenas romperam com uma tradição na qual acreditavam. Mas foi muito mais que isso. Por romper com o sistema religioso que dominava praticamente o mundo todo, eles arriscaram a vida. Isso porque, naqueles dias, quem discordava da igreja tinha apenas dois caminhos: ou se retratava e amargava uma vida inteira preso em alguma masmorra, ou eram mortos, como foram Jerônimo Savonarola, padre dominicano italiano que foi enforcado, e John Huss, um padre tcheco que foi queimado vivo, mas que disse a célebre frase: “Hoje vocês matam um ganso (huss quer dizer ganso na língua tcheca), mas daqui a 100 anos um cisne surgirá que vocês não poderão assar”, o que se cumpriu na vida de Martinho Lutero.

Contudo, a Reforma não foi apenas um movimento teológico, apesar de ter dado o pontapé inicial de uma grande revolução teológica, mas foi, sobretudo, o clamor espiritual nascido no coração de pessoas que se recusaram a transigir com o pecado e negociar a verdade.

Homens como o padre dominicano Martinho Lutero, juntamente com Ulrico Zuínglio, João Calvino, dentre outros que foram influenciados pelos precursores John Wycliffe e John Huss, não romperam com a igreja papal atrás de fama e reconhecimento, mas por fidelidade à Palavra de Deus. Que exemplo para nós! E esse exemplo deveria ser um referencial para essa geração, em que a grande maioria das cisões que existem são exatamente por causa do dinheiro e do prestígio.

Mas hoje Deus ainda chama pessoas para viverem com a mesma coragem que esses homens honoráveis. A coragem da convicção, da verdade e da integridade e esse chamado é urgente.

Nas linhas que seguem, irei falar de três lições que a Reforma nos dá, visando a que possamos avaliar se podemos nos enquadrar no padrão revolucionário que teve seu nascedouro em 1517, na Reforma Protestante.

A CORAGEM DA ORTODOXIA EM UM MUNDO FLUÍDO.

A primeira das três lições é quanto à ortodoxia. A igreja cristã paulatinamente foi se desviando da verdade e simplicidade da Bíblia, o que incomodou os reformadores e os levou ao seu ato de coragem.

E nós, a exemplo deles, somos desafiados no que tange à ortodoxia. Isso porque vivemos dias em que a verdade se tornou relativa. Cada um monta a sua verdade conforme seu gosto e seu entendimento. E assim, o que parece certo para um pode não ser apropriado para outro. E mesmo que isto inclua pensamentos e atitudes bizarras, deve-se aceitar tanto um quanto outro. E quanto à fé? Bom, a fé é tratada como um assunto de foro íntimo, uma opção pessoal. Existem aqueles que acreditam nas coisas mais esdrúxulas e também aqueles que não acreditam em nada. Existem, inclusive, aqueles que acreditam em tudo e não rejeitam nada. São verdadeiras esponjas religiosas, que absorvem tudo o que acham que é certo. O pensamento desses últimos é: “se fala de Deus, tô dentro!”.

Por outro lado, existe a multidão que segue as religiões que aprenderam de seus pais e, sem nenhum critério, anuem a todos os seus ditames, mesmo que eles não façam o menor sentido. Muitas vezes essas pessoas permanecem nessas religiões por pura tradição e outras vezes, por não quererem se sentir deslocados, e continuam seguindo a multidão.

Porém, como os reformadores, precisamos permanecer firmes nas verdades imutáveis da Palavra de Deus, mesmo que estas sejam impopulares. No Brasil, não temos perseguição religiosa aberta, como nos países de regimes totalitários como a China, Coreia do Norte, Cuba e os países muçulmanos. E por isso, não estamos ameaçados a morrer. Mas existe uma perseguição velada e sutil. Uma perseguição mordaz, que muitas vezes vem disfarçada de leis estabelecidas nos plenários. E assim, com medo de incorrerem no ‘pecado’ de serem crentes, muitas retrocedem com medo do cancelamento. O grande desafio de nossos dias é permanecermos na ortodoxia, pois Deus nos chamou para permanecermos no que Ele revelou na sua Palavra. Ele nos comissionou a defender as nossas convicções bíblicas com amor.

“Amados, quando empregava toda a diligência em escrever-vos acerca da nossa comum salvação, foi que me senti obrigado a corresponder-me convosco, exortando-vos a batalhardes, diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos”.  (Judas 1:3).

Mas, não podemos esquecer de que nossas convicções não podem vir de opiniões humanas, pois assim, estaremos enquadrados no mesmo erro daqueles que permanecem seguindo as multidões. Devemos buscar a verdade, a qual é o alicerce de nossas convicções, diretamente da Palavra de Deus.

Essa era a fé dos reformadores. Por não demoverem de suas convicções bíblicas, muitos deles pereceram. Mas, mesmo assim, eles mantiveram sua fé intacta e sua consciência limpa diante de Deus. Eles foram inabaláveis. E quando a Bíblia é o nosso alicerce, nenhuma tempestade cultural abala a nossa fé.

Diante disso, pergunto: você tem moldado suas crenças pela palavra de Deus ou pelas pressões do mundo?

A verdade é que, mesmo que isso custe a aceitação social, devemos reafirmar nosso compromisso com a verdade.

Entretanto, além disso, o Senhor nos deu outra missão, porque apenas nos apegarmos à verdade não é o suficiente. Ela deve transbordar de nós. Assim, somos chamados a proclamar a verdade a esse mundo relativista, que jaz no maligno, assim como foram chamados os reformadores.

“Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina.” 2ª Timóteo 4:2-3.

FIRMEZA NA VERDADE COM GRAÇA

Contudo, muitos dos que são chamados à firmeza da ortodoxia e a proclamar a verdade, o fazem de forma tão rude que acabam prestando um disserviço ao Reino de Deus. Isso porque muitos confundem firmeza com arrogância. E essa atitude afasta muitas pessoas da verdade do Evangelho. Aqueles que estão enredados nesta confusão pensam que estão pregando o evangelho com firmeza, quando na verdade, erguem um muro entre eles e aqueles que os ouvem.

Por outro lado, existem aqueles que confundem tolerância com omissão. Isto é, em nome da tolerância, se calam diante dos ataques ao Evangelho e até ao próprio Senhor Jesus. Mas, na realidade, essas pessoas se calam com medo de serem canceladas e passarem por uma morte social. Ambas as atitudes, a omissão e o medo do cancelamento, nem de longe passaram pela cabeça de Martinho Lutero quando pregou suas 95 teses nas portas da capela do castelo de Wittenberg.

A verdadeira coragem fala a verdade, mas o faz com amor e não com arrogância. Lutero foi firme, mas foi também movido pela graça, pois sabia que a atitude de Jesus foi amorosa e perdoadora até diante dos seus algozes. Por outro lado, Lutero também não podia se calar diante dos desmandos da igreja romana, depois que conheceu a verdade. Ele não temeu, mas não porque ele fosse um tipo de super-humano, mas porque ele sabia que seu Senhor também não temeu dizer a verdade mesmo em face da morte. Da mesma forma, não podemos nos calar diante do erro, porém devemos confrontá-lo com graça e humildade. Devemos ser exemplos de equilíbrio entre a firmeza e a compaixão empática, porque a graça tempera a verdade que, por sua vez, fortalece a graça. Juntas, elas transformam a vida e moldam discípulos maduros e preparados para toda boa obra. Ore a Deus por um coração firme na convicção, mas doce na expressão da verdade.

 “Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo.”. Efésios 4:15

Outra pergunta: você fala a verdade visando vencer debates e conseguir likes nas redes sociais ou para transformar vidas? Os reformadores tiveram a coragem de falar a verdade porque ela os transformou e eles queriam que outros tivessem a mesma experiência.

CONVICÇÃO QUE TRANSCENDE O SAGRADO

Certa vez, um sapateiro interpelou Lutero, perguntando o que ele deveria fazer para servir a Deus. A resposta de Lutero foi ‘faça um bom sapato e venda por um preço justo’. Com isso, o reformador estava enfatizando a importância da excelência no trabalho e da honestidade, utilizando a profissão como um ministério que glorifica a Deus e também abençoa as pessoas.

Contudo, muitos hoje costumam fazer separação entre a vida ‘espiritual’ e a ‘secular’. E, com isso, elas perdem o sentido de propósito em suas tarefas diárias e profissão.

Mas os reformadores nos lembram de que toda boa obra é sagrada, quando feita para o Senhor. Ou seja, para eles, o trabalho, o lar, a política e a arte são campos da vocação de Deus. Dessa forma, os reformadores nos inspiram a servir a Deus com excelência onde estamos, fazendo do nosso cotidiano um altar de adoração. Isso porque, quando Cristo é o centro de nossas vidas, cada passo que damos se torna um ato de adoração. De que forma você tem feito as coisas: você as tem feito por obrigação ou para glorificar a Deus?

Uma coisa é certa: devemos transformar nosso trabalho e todas as nossas relações em expressões práticas do ‘Soli Deo Gloria’ (a Deus toda glória) da Reforma Protestante.

Para concluir, devo dizer que os reformadores desafiaram papas, reis e nobres, mas seu maior desafio foi reformar os seus próprios corações. E esse também é o nosso desafio, diante de tantas facilidades dos nossos dias. Precisamos de uma nova reforma. Aquilo pelo que os reformadores lutaram enfraqueceu-se e muitos têm se colocado debaixo do jugo da religião, como acontecia no passado. Esse chamado ecoa para nós hoje: viver pela fé, sustentar a verdade com integridade e servir a Deus em cada área de nossa vida. Deus não nos chama a reformar apenas o âmbito eclesiástico, mas, sobretudo, para reformarmos nosso coração. Que cada um de nós viva uma reforma pessoal, pois onde a fé é viva, a graça é real e Cristo é o centro.

 

Ricardo Castro
Pastor, escritor, músico e Doutor em Teologia

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